terça-feira, 28 de dezembro de 2021

2019 - Torrubia et al. - Aves de SFX

 


"Muitas pessoas não sabem, mas as principais listas de aves do mundo diferem significativamente entre si, reconhecendo 10.585, 10.738 ou 11.126 espécies (fora 158 recentemente extintas). Esses números refletem os desacordos entre os ornitólogos sobre o que seja uma espécie, uma das questões mais profundas da biologia que as aves parecem adorar confundir.

Mesmo com essas divergências, comparando esses totais com as 6.399 espécies de mamíferos hoje reconhecidas (fora 96 espécies recentemente extintas), vemos que bichos de penas ganham com folga dos bichos de pelo em diversidade. Especialmente quando se considera que um estudo recente sugere que há, na verdade, pelo menos 18 mil espécies de aves.

As aves vivem em todos os continentes e em todos os ambientes, exceto as áreas mais profundas do oceano. Elas ocupam todo o espaço entre pelo menos 10 mil metros de altitude (a mesma atingida por aviões de passageiros e gansos-de-pescoço-barrado) e 500 metros de profundidade (onde pinguins-imperadores vão caçar seu alimento) e são dotadas de superpoderes para prosperar em situações extremas.

Pinguins-imperadores podem mergulhar por mais de meia hora, enquanto mariquitas com o peso de uma caneta podem voar por dias a fio sobre o oceano durante suas migrações, o que significa viagens radicais de ida e volta todos os anos.

Estes superpoderes incluem também super sentidos como enxergar em ultravioleta e ver campos magnéticos. Algumas, como nossos urubu-de-cabeça-vermelha e as almas-de-mestre, têm um olfato hiper apurado, enquanto todas têm uma audição absurdamente acurada.

Passarinhos não são apenas carinhas bonitas. Apesar das piadas, na verdade aves são consistentemente inteligentes em comparação a mamíferos do mesmo tamanho. Algumas, como papagaios, gralhas e corvos, passam em testes de autoconsciência e inteligência simbólica onde crianças de 3-4 anos falham. O que levanta questões filosóficas sobre a moralidade de papagaios engaiolados.

E não vamos esquecer o óbvio. Aves estão entre as criaturas mais belas que vivem em nosso planeta, seja pelo visual, seja pela música. E, podem voar, o que desde sempre capturou a imaginação humana e é visível na nossa arte, simbologia e religião.

As aves são, para resumir, maravilhosas. E é o fato de serem maravilhosas que deu origem ao passatempo de observá-las e, logicamente, à união deste com o passatempo mais recente de fotografá-las.

A observação de aves é uma atividade que pode ser realizada em qualquer lugar. Enquanto escrevo este texto, a uma quadra da famosa esquina da Ipiranga com a São João, observo e sou observado por periquitos-ricos, bem-te-vis, cambacicas, sanhaços (duas espécies) e rolinhas que visitam o comedouro na minha janela. De quando em quando, paro de escrever para ver se aquilo que passou voando é um dos gaviões-asa-de-telha que frequenta a vizinhança em mais uma caçada a pombos aqui na São Paulo selvagem.

Também aqui, o canto da madrugada dos sabiás-laranjeira (resultado do barulho que nós, humanos, fazemos) e o chilreio dos pardais ao amanhecer têm um efeito que não consigo definir a não ser como a sensação de um dia agradável que começa.

Acho que são essas sensações indefiníveis que cativam quem observa (e ouve) aves. É a música, da simplicidade pardálica à complexidade dos uirapurus. Os momentos de ação, como as caçadas dos meus gaviões vizinhos. Os momentos de descoberta, como ver uma espécie, ouvir um canto ou observar um comportamento pela primeira vez. E, logicamente, os momentos de surpresa e incredulidade, como olhar para cima e dar de cara com uma harpia te olhando nos olhos ou navegar no que parece uma cena de Mar em Fúria e ver albatrozes brincando na tempestade.

As aves são maravilhosas e sua maravilha torna nossas vidas mais ricas e mais interessantes de serem vividas. Não me surpreendem as muitas histórias de pessoas que encontraram forças para lidar com perdas, com a depressão e doenças variadas na observação de aves. Observar aves, realmente observar aves, é celebrar a vida e conectar-se com algo maior que a maioria de nós, preocupados com coisas menores, esquecemos que precisamos.

O prazer da descoberta, da aventura, do diferente, de sair da zona de conforto e ter experiências que, se não fosse para incluir um passarinho na sua lista ou tirar uma foto, você nunca teria. Observar aves significa viajar, nem que seja até a praça ali do lado, e todo observador de aves pode contar histórias sobre pessoas, lugares, comidas, bebidas, culturas e formas de pensar que jamais conheceria se não fossem os passarinhos. 

E de muitas aventuras, vitórias, roubadas, quase tragédias e superações heroicas.

A apreciação da vida que vem com isso muda as pessoas. É difícil ser um observador de aves sem se importar com as aves. Sem que você sinta a necessidade de dar algo em troca a quem te faz bem. Coisas simples já fazem diferença, como plantar uma árvore numa praça, ter um comedouro na janela, comprar produtos que ajudam a conservação e boicotar os que ajudam a destruição e, o mais simples e o mais importante, não eleger (ou reeleger) quem defende a destruição. Não há como observar aves sem querer mudar a realidade que já levou aquelas 158 espécies à extinção.

Observar aves, como todo passatempo, faz com que você compre coisas, viaje e use serviços. O que significa criar um ramo da economia onde gente que gosta de olhar passarinhos sustenta gente que cria as condições para que passarinhos sejam observados. Isso significa dinheiro fluindo para pousadas, guias, restaurantes, empresas aéreas, locadoras de automóveis, lojas de lembranças, cervejarias artesanais (nós temos que celebrar os lifers!), etc, etc. 

E, o mais revolucionário, para os empresários de passarinhos: os donos das áreas que pessoas como eu visitam e onde pagamos entrada para ver os passarinhos que desejamos. Estes empresários podem ser estatais (como nos parques nacionais) ou privados (como em um sítio, quintal ou pousada) e, ao longo dos anos, já vi situações desde camponeses a hotéis de luxo, passando por comunidades em lugares remotos, que cuidavam bem de seus passarinhos (e seus habitats) porque a renda obtida dos observadores de aves valia a pena.

Não entrarei aqui com números de observadores no Brasil e o quanto eles podem movimentar em recursos. Para mim, isto é secundário em uma revolução na forma em que nos relacionamos com o mundo. Uma forma de reconectar com o mundo natural, criar ciclos virtuosos e, como fizeram as aves, deixar de ficar presos ao chão. 

Este livro traz uma ampla amostra do que um visitante pode ver na região de São Francisco Xavier. Ali podem ser observadas espécies da Mata Atlântica, incluindo muitas raridades e endemismos, outras de áreas mais alteradas e algumas mais comumente associadas ao cerrado, mas que ocorrem na região por serem colonizadores recentes ou remanescentes de um passado não muito distante, quando o Vale do Paraíba era um mosaico de florestas com árvores gigantescas (os jequitibás sobreviventes o provam) e cerrados.

Em SFX, algumas horas de passarinhada podem render espécies de florestas de araucária (como o grimpeiro), de cerrado (gralha-do-campo), mata atlântica (papo-branco) e especialidades dessa parte do Brasil (bicudinho-do-brejo-paulista). Com uma ótima infraestrutura de receptivo e acesso fácil por estradas, é uma das áreas mais ricas e agradáveis para passarinhar em São Paulo. Eu sei. Tenho visitado desde 1994.

Espero que este livro estimule mais pessoas a prestarem atenção às aves à sua volta, e que muitas dessas pessoas se interessem por saber mais sobre as espécies, suas características e seus hábitos, embarcando numa viagem de descobertas que não tem fim." (Fabio Olmos)


Apreciem sem moderação.


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